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31.7.07

CARTA AO ÁLCOOL


Bom dia

Hoje vou escrever para ti, álcool. Nunca o fiz anteriormente, nem tão pouco a ideia me tinha passado pela cabeça, mas não me pareceu desajustada desde que me foi proposta.

É verdade, fazes parte da minha vida há já alguns anos (cerca de 14/15 anos, pelo menos). Não é que te comprasse, adquirisse ou alugasse. Não, tu instalaste-te na minha vida sem pedires para entrar, e foste ficando, ficando até que te instalaste.

De princípio pensava que era mais ou menos “normal”, que fazias parte da juventude, da euforia da noite, do convívio em bares ou cafés… mas o tempo foi passando e TU não passaste, pelo contrário, ficaste. Instalaste-te como quem compra um móvel para a sua casa que, à partida, será para muitos anos.

Eu era uma pessoa alegre, divertida, brincalhona…. Hoje recordo-me várias vezes, de umas ferias com um grupo de amigos no Alentejo… O que eu brinquei naquelas férias… O que me diverti… e sei que fiz divertir o grupo. Brinquei, brinquei com as pessoas, com as situações que passavam por nós, com o sol, com a chuva, com tudo! Mais tarde estive várias vezes com este grupo, e/ou elementos do grupo, e o tema de conversa eram sempre aqueles dias, e as brincadeiras que todos fizemos naquelas férias de Verão. Ainda hoje nós falamos daquelas férias no Alentejo.

E os fins-de-ano, o Carnaval, as férias de Verão… Enfim... eram sempre em festa!!!!!

Depois conheci o “ Sr. Pedro” e a minha vida começou a tomar outro rumo. As férias que até aqui eram passadas no Norte, com primos, começaram a ser passadas por cá. O período de namoro foi cerca de um ano e logo se começou a falar na palavra “casamento”. Tornei-me na pessoa mais importante para mim, pois iria ser uma senhora casada, com uma casa, com o meu marido, ter filhos e, enfim, ser muito feliz!!!!!

Mas nem sempre as nossas previsões surtem de igual maneira na realidade, e o que não tinha planeado ou programado é que iria ter uma relação a TRÊS, e não de duas pessoas, como é o normal. Não que esteja a falar de três pessoas, mas sim de três elementos numa relação, ou seja, eu, o meu marido, e sempre a presença do álcool.

Numas vezes mais constantes, noutras mais despercebidas, que até eu pensava”OK já não existes no meio de nós”, mas depressa essa ilusão desaparecia e a tua presença instalava-se.

Passaram-se anos de grande angústia, pois as datas de comemoração de mais um ano de casamento, foram sempre passadas com “birras” e, por isso, ele saía e eu ficava em casa sozinha a chorar e a lamentar tal situação, pois até tinha vergonha de sair à rua naquele dia e encontrar alguém conhecido, enquanto o meu marido estava acompanhado contigo – ÁLCOOL. Os aniversários também foram sempre (ou quase sempre) sem grandes festejos, porque estaríamos sempre chateados; as prendas eram sempre esquecidas porque não tinha havido tempo para comprar algo, embora houvesse sempre tempo para estar contigo (álcool). O período antecedente ao Verão e o próprio Verão era quando mais fazias parte da nossa relação. As tardes no café em convívio com “amigos”eram sempre uma certeza. Aos sábados o meu marido dizia-me que ia trabalhar, e conforme eu ia vendo o dia a passar, e quando entrava em contacto com ele, logo me apercebia que já estava CONTIGO, e que iria continuar.

O dia-a-dia ia passando, as semanas também, os meses, sempre sem alegria ou motivação, pois TU estavas sempre no meio de nós. Comecei a detestar os fins-de-semana, pois já previa (e acontecia) que acabavam sempre da mesma maneira – contigo sempre muito presente.

As férias nunca eram realizadas porque não havia “ clima” para as programar e planear. O medo instalou-se em mim pela TUA presença, a vergonha das TUAS atitudes, do teu pensamento e do teu comportamento eram VERGONHOSAS, pois estiveste sempre a fazer companhia ao meu marido, e não eu.

Os amigos foram-se afastando. Sim, porque ao longo destes anos, tivemos amigos, pessoas “equilibradas” em seus comportamentos e atitudes que não estão habituadas à TUA presença. Ninguém com um pouco só de bom senso tem paciência para te aturar e presenciar. Assim como eu te DETESTO, os outros pela menor quantidade de vezes que assistiram a atitudes que TU desencadeias, não têm paciência para assistir ao espectáculo vergonhoso que crias.

E eu… cada vez mais, a sentir-me sozinha neste mundo. Comecei a sentir uma solidão dentro de quatro paredes. Comecei a fechar-me cada vez mais, a não querer estar com amigos, em festas de família, a sair com alguém …. E se existiam casamentos onde teríamos que ir… enfim… era um DESASTRE!!!!

Desastre só para mim, e para as pessoas que nos rodeiam, porque, para TI, não. Desenvolvias uma espécie de “não te importes com nada nem com ninguém, simplesmente consome-me” (deveria ser o que estavas constantemente a dizer ao ouvido do meu marido), e ele, como dependente de TI que é , assim o fazia e TE obedecia.

Até que comecei a olhar para o meu marido como uma pessoa desprezível, fraca, sem personalidade, sem postura e sem objectivos na vida, e comecei cada vez mais a perguntar-me o que fazia eu ao lado de uma pessoa assim. Até que dei um FIM a esta relação.

Em momentos da ruptura desta relação, houve grandes conversas e promessas de retomarmos o caminho de DOIS e não de TRÊS elementos. ACREDITEI, e agora chego à conclusão que depois de TANTA coisa na vida por que já passei, TU não desistes. És uma doença que rói e corrói qualquer pessoa e relação!

Agora olho para trás... E penso… Penso como eu era alegre, brincalhona, divertida e com uma enorme vontade de VIVER.

Adeus ÁLCOOL, que não me apetece continuar a escrever mais para TI, pois não mereces mais atenção!!!!!!

Maria
Julho de 2007


Esta carta foi escrita no âmbito de um processo terapêutico em que um dos membros do casal é alcoólico. À luz dos princípios da Terapia Narrativa, propusemo-la como tarefa terapêutica numa consulta recente.
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